KOMOREBI

Revisitar a própria infância é um processo em que a emoção por vezes nos impede de domar as memórias e traduzi-las de maneira organizada.

É como observar fotografias antigas, degradadas pelo tempo, sendo levadas desordenadamente pelo vento. A dança de imagens sobrepostas e entrelaçadas aos raios de sol cria projeções tremulantes de luz e sombra.

KOMOREBI é uma palavra de origem japonesa que significa "luz do sol filtrada pelas folhas das árvores". Nela, encontramos abrigo para dialogar com as crianças amarelas que fomos um dia.

Kaori Nagata & Rafael Hayashi

PROJETO HOSHIGAKI

Hoshigaki é a técnica japonesa para produção de caqui seco. Os frutos são descascados e pendurados por semanas. Após secos, devem ser refrigerados e podem ser consumidos ao longo do ano, até a próxima safra.

Este projeto nasceu em 2017, na exposição individual “Inheritance is Accidental”, (Gallery Nomad, Berlim). Entre quadros e desenhos, uma instalação composta por objetos pessoais homenageava minha avó, cuja memória está embalada no sabor complexo e nostálgico de um caqui seco. Na ocasião servi aos visitantes hoshigakis que levei comigo do Japão e, numa performance, criei um lugar de diálogo onde os visitantes puderam trocar reflexões sobre sabores da infância e lembranças de quem já partiu.

Em março de 2020, isolada na pandemia, decidi aprender a fazer hoshigaki com minhas próprias mãos. Desde então a pesquisa se repete anualmente. A cada safra, numa tentativa de também entender o mundo, descubro um pouco sobre mim mesma e sobre o processo do hoshigaki. Descobri que seu ingrediente mais importante é a espera. O trabalho entediante torna-se contemplativo: com a passagem do tempo, frutos lisos e brilhantes são transformados em esculturas enrugadas e opacas por fora, mas reluzentes por dentro. A cor se concentra num laranja profundo e a superfície é açucarada pela calma e paciência de quem insiste em aguardar.

O resultado é compartilhado anualmente com pessoas que me rodeiam. O objetivo maior reside neste ato social e cerimonial que é comer e compartilhar com o outro. Assim, o lado intangível da obra poderá ser revelado: a troca e a experiência efêmera vivenciada no coletivo e em comunidade. Espero, portanto, criar espaços onde ressonância, diálogos e reflexões possam ocorrer livremente em toda sua beleza.

FICAR

Quando soltei sua mão

e levei até o rosto,

você dissolveu entre os dedos,

apagou na neve,

virou poeira de ossos.

Hoje não falo de ruga ou pele.

Quero a gestação vazia

preenchida com legado,

este filho belo, triste,

efêmero e pincelado.

Nas gerações diluídas

desapareço, mas fico,

permaneço, mas fujo.

No branco do inverno

redesenho sua mão.

PARTIR

A partida de minha avó materna, precoce e brusca, dividiu minha infância de maneira irreversível. O primeiro contato com a morte criou em mim uma fissura, preenchida por silêncio.

Este conjunto de imagens é uma tentativa de manifestar a essência dela, que me ajuda a compreender o que é identidade, afeto, ausência e nostalgia. Ao esculpir lentamente figuras humanas com tinta e pincel, desejo acessar uma história que nunca existiu entre nós duas. Pintar é um exercício de resgate do futuro do pretérito.

Ao revisitar histórias pessoais, procuro sentimentos universais que dialoguem com o mundo. Aqui, falo de perdas e fantasmas, mas também da beleza do apagamento. A efemeridade é assustadora e pode despertar um impulso do qual não somos capazes de desviar. Quero imortalizar o que é valioso através da arte. E você?

Kaori Nagata

IDIOMA

Eu nasci num lugar distante

Longe da casa que me brotou

Brincava em outro país.

Quando tinha fome de amor,

Não sabia soletrar o caminho de volta.

Todos os dias, lá do outro lado

Aquela voz passeava pela janela

Chamando para almoçar

Cantando ao vento

um aroma de casa:

Era o sabor da minha mãe.

PENTATÔNICA

A série PENTATÔNICA foi criada para a exposição SOPRO & VENTANIA, um duo com o artista Rafael Hayashi. A força da infância e nossa experiência com as crianças que nos rodeiam foi o ponto de partida deste trabalho.

Ao longo do processo, a reflexão sobre meus sobrinhos tornou-se um convite para investigar minha própria infância. Memórias embaçadas foram aos poucos se entrelaçando com a infância que testemunho hoje e ganharam nitidez. Vi nascer em meu espírito um desejo de reconciliação e conversa com o passado.

Dores e ausências foram cerzidas com as linhas que tracei, numa tentativa de eliminar as notas que provocam tensão. Assim como na escala pentatônica, (presente nas músicas que embalaram minha infância dentro de um lar japonês), os elementos que retrato nesta série são as chaves para um exercício interno de improviso e busca de harmonia.

Kaori Nagata

A LINHA DO TEMPO E O TEMPO DA LINHA

(Traçando Palíndromos)



O tempo é linear e a linha também. O tempo segue à frente e jamais recua. A linha flui em retas e curvas e nada a impede de voltar atrás. 
O tempo corre, a linha escorre. Já a palavra, ocorre. Com o tempo ela concorre ou se alinha. Com a linha ela discorre ou desalinha. Enquanto 
o tempo sopra no elísio, na tinta a linha desliza, na palavra o som se 
asila ou alisa. O que o tempo desfoca, o desenho foca, a palavra fica. No meio tempo, a artista entra e concentrada desconcentra tudo: põe dobras no tempo, dobraduras no traço, desdobra as palavras. E o que sobra é obra: reflexões no tempo, refluxos no risco, reflexos nas palavras. O tempo é voo, a linha é via, a palavra é vaivém E assim o tempo, a linha e a palavra deixam rastros – no papo, no papel, na parede. Feito parábolas, percepções, palíndromos. São as artes da Kaori Nagata. Entrelinhadas, entremeadas, entrelaçadas. Entre!

Fraga

Humorista e palindromista

CASINHA DE BOTÃO

Na minha memória

Dois olhinhos, duas amêndoas

Com as mãos, ela sorria

Encaixava as peças

Rebobinava o tempo

Apagando as nódoas

Costurando meu dia

Com o fechar lento

Das lacunas da camisa.

CASINHA DE BOTÃO é a segunda edição do que agora é uma série anual de micro desenhos. Nesta edição sigo investigando a infância como fio condutor das imagens que, ao serem traçadas linha a linha sobre o papel, revelam lembranças de quem fui no passado.

Ter uma área pequena para trabalhar transformou meu processo criativo. Muitas vezes, a cena que visualizei é rejeitada pelo papel e precisa ser descartada. Existe, portanto, uma constante busca pela imagem que se encaixa: aquela que não sofre com o material que a abriga.

Da mesma forma, aos poucos pude reconhecer na criança que fui este mesmo anseio pelo pertencimento. A cada desenho que descarto, um desejo de acolhê-la. E a cada encaixe que encontro, um desejo de celebrá-la.

Kaori Nagata

INTERVIEW PROJECT

Este projeto consiste em entrevistas cujo objetivo foi investigar a relação que imigrantes de diferentes continentes têm com sua alimentação. Das gravações das entrevistas nasceram pinturas, desenhos, e também a palavra falada, na voz dos entrevistados. Foi construída uma instalação contendo áudio das entrevistas, pinturas, esboços e anotações.

A busca por diálogo com os imigrantes no Interview Project conecta-se à minha própria história: como filha de imigrantes, parte da minha jornada artística reside na ideia de que indivíduos que se deslocam para terras longínquas são valiosos recipientes de suas culturas de origem.

Kaori Nagata